Se há algo que considero ser um dos maiores progressos da arqueologia (e da ciência em geral), é o modo como nos últimos anos se rejeitou a visão de cúmulo da história e de evolução em geral (e sim a utilização do termo progresso é um paradoxo propositado).
A ontogenia sobrepôs-se gradualmente à evolução, numa crença de que o processo histórico (visto enquanto tempo que se sucede e que vai dando lugar ao que nós somos) é cheio de acasos onde nem sempre o mais forte sobrevive.
Aliás quer o acaso, quer a emergência, tornaram-se conceitos progressivamente dominantes, ligados a movimentos como a Teoria do Caos (1) ou ao conceito de Sistemas Adaptativos Complexos (2).
Pergunto-me sobre quantos membros da chamada comunidade arqueológica é que ainda vêm os homens da pré-história como os nossos tetravós, ou acreditam que por aqui nesta Península ainda vivem essencialmente os descendentes dos bravos Lusitanos.
Por outro lado, num mundo cada vez mais envolto nas teias do ideário neo-liberal (para os menos avisados, vide p. ex. o programa "Iniciativa" da RTP2, com o apoio do IQF e a sua apologia do "empreendedor" importação do "entrepeneur") é interessante ver como cada vez mais gente concorda de que a lei da selva não é um princípio universal, e muito menos um princípio universal.
Uma vez, no final de um jantar o Juan Manuel Vicent disse-me algo como "Isto não é inocente. É um combate entre nós e eles, para demonstrar que ao contrário do que eles dizem a História não apenas assim, nem tem apenas os seus princípios".
A frase está obviamente ligada a um marxismo evidente, com cunhos de leninismo (a figura "deles" - o inimigo). Aliás, penso que devido a este cunho leninista, houve uma especial preocupação numa dominância da visão marxista, com laivos de um totalitarismo, que não deixa de ser interessante e que é coerente com a visão de combate. Ainda para mais quando a própria visão marxista possui muito de evolucionista, o que daria uma interessante conversa sobre o que é a visão de Marx e a sua figura, num dos temas que mais aprecio e que trata de como nenhuma figura escapa às vicissitudes da sua época, mas isso é uma outra longa conversa.
Na sociedade do bem-estar é difícil não acreditar em conceitos como progresso e evolução. Quando os pais se preocupam por deixar um legado melhor aos seus filhos e a qualidade de vida cresce.
Em tempos à beira de crise, como são estes em que vivemos, advinha-se que quando vierem tempos piores, viram também outras visões, nos quais o conceito de progresso será claramente posto em causa. Dir-se-á então que o progresso não é continuo. Que varia num movimento pendular, feito de avanços e recuos.
De um teclado, em frente a um ecrã de computador declaro que não acredito em progresso, nem em evolução. De todo.
É verdade que nunca tivemos tantos meios à nossa disposição (e eu que adoro chips, adoro também esta proliferação de tecnologias e meios), mas não acredito que isso nos torne melhores.
Não acredito que sejamos uns privilegiados. Aliás, sobre esta noção remeto para o brilhante artigo do Rui Borges, publicada no Público de Sábado passado (29/4/2006) "Socorro, somos todos privilegiados". Os privilegiados não são aqueles que não passam fome, ou que não têm horários de trabalho de 14 horas semanais. Os que estão nestas condições são os carenciados (o que vai dar à crónica da Helena Matos, que está mesmo ao lado da do Rui Borges, na mesma edição). Nós quanto muito seremos os remediados, a quem os verdadeiros privilegiados acusam de, imagine-se, privilégio, procurando novos modos de escravatura. Porque não nos enganemos, hipotecar uma vida de trabalho é um modo de escravatura perante outrem. E se é verdade que seremos sempre escravos de algo e de outros, é bom que pensemos perante quem nos estamos a escravizar. Será um dos últimos privilégios dos remediados.
Para quem (re)constrói o passado, é bom que não sejamos politicamente inocentes, mas também é bom que o nosso empenho político seja claro e eticamente equilibrado (no sentido de não entrar já na paranóia (3)), porque se tudo é política, em ciência há politicas e politicas, políticos e políticos.
(1) sobre esta matéria vide: Gleik, John (1989) – Caos: A Construção de uma Nova Ciência, Gradiva
(2) vide Holland, J. (2002) – A ordem oculta, Gradiva e/ou Gell-Man, Murray (1997) O Quark e o Jaguar, Gradiva
(3) Paranóia - do Gr. paránoias, delírio s. f., doença mental caracterizada pelo conceito exagerado que de si mesmo faz o doente que se julga incompreendido e superior ao seu meio, tendo por vezes delírios de grandeza ou de perseguição; gír., (no pl. ) ideias persecutórias desencadeadas pelo consumo de drogas psico-estimulantes ou psicodislípticas (fonte Dicionário de Português online da Primberam).
segunda-feira, maio 01, 2006
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