sábado, março 03, 2007

Es gibt


Foto: Evita Alle

" It is a light, that the wind has extinguished.
It is a pub on the heath, that a drunk departs in the afternoon.
It is a vineyard, charred and black with holes full of spiders.
It is a space, that they have white-limed with milk.

The madman has died. It is a South Sea island,
Receiving the Sun-God. One makes the drums roar.
The men perform warlike dances.
The women sway their hips in creeping vines and fire-flowers,
Whenever the ocean sings. O our lost Paradise.

The nymphs have departed the golden woods.
One buries the stranger. Then arises a flicker-rain.
The son of Pan appears in the form of an earth-laborer,
Who sleeps away the meridian at the edge of the glowing asphalt.
It is little girls in a courtyard, in little dresses full of heart-rending poverty!
It is rooms, filled with Accords and Sonatas.
It is shadows, which embrace each other before a blinded mirror.

At the windows of the hospital, the healing warm themselves.
A white steamer carries bloody contagia up the canal.

The strange sister appears again in someone's evil dreams.
Resting in the hazelbush, she plays with his stars.
The student, perhaps a doppelganger, stares long after her from the window.
Behind him stands his dead brother, or he comes down the old spiral stairs.
In the darkness of brown chestnuts, the figure of the young novice.
The garden is in evening. The bats flit around inside the walls of the monastery.
The children of the caretaker cease their playing and seek the gold of the heavens.
Closing accords of a quartett. The little blind girl runs trembling through the tree-lined street.
And later touches her shadow along cold walls, surrounded by fairy tales and holy legends.

It is an empty boat, that drives at evening down the black canal.
In the bleakness of the old asylum, human ruins come apart.
The dead orphans lie at the garden wall.
From gray rooms tread angels with shit-spattered wings.
Worms drip from their yellowed eyelids.
The square before the church is obscure and silent, as in the days of childhood.
Earlier lives glide past upon silvery soles
And the shadows of the damned climb down to the sighing waters.
In his grave, the white-magician plays with his snakes.

Silent above the place of the skull, open God's golden eyes."

George Trakl, Salmo (Fonte: Poem Hunter)

O que significa ser? Quando no inicio deste poema vemos que se diz'"It is" (no original alemão "Es ist") somos transportados para essa pergunta do que é existir. Porque no inglês o ser implica o "it", a coisa e no alemão o "es". É interessante o desdobramento do ser em duas palavras, a coisa é.
Mas ao mesmo tempo a coisa dá-se como na expressão alemã "Es gibt" (há). "Geben" é o termo alemão para oferecer e a relação do vocábulo está expressa pelo termo "gib her" (dá cá)1. O haver alemão tem a ver com a dádiva, ou seja, o que existe dá-se, a coisa aparece, tal como na aletheia (poupo-vos de caracteres gregos). Nesse sentido surge o "Ereignis" o acontecimento que é uma forma de apropriação, porque ao dar-se a coisa passa a ser para, num sentido de posse que não pode ser entendida num sentido estrito.
No TAG em Inglaterra tive uma interessante discussão sobre o termo da posse, que naturalmente se torna problemático ao legitimar uma sociedade capitalista. Lá ouvi os argumentos sobre a posse em paragens remotas (o saudosismo do comunismo primitivo), mas penso que há um termo fundamental para compreender a posse que é: a possessão. O termo aponta para algo temporário e ao mesmo tempo ambivalente. Quando vejo o "Exorcista" pergunto-me sempre sobre quem toma posse de quem, se o demónio da rapariga ou a rapariga do demónio. Há ali uma ambivalência que resulta da dádiva: a rapariga empresta o seu corpo, o demónio dá-lhe o seu carácter. Tal como no jogo entre o voyeur e a observada: ele que a possui com o olhar e ela que o domina pela fantasia (se estiverem incomodados com a diferença de género é só mudá-lo que o jogo da posse transmite-se na mesma, mas a fantasia feminina é capaz de estar bem mais habituada a entender que de facto pode possuir alguém sem o ter fisicamente).
A posse é um elemento das nossas vidas, comum ao facto de que as coisas dão-se connosco. Nós não somos os meros sujeitos passivos que recebem o estimulo, nem somos os sujeitos omni que atribuem significados. Só a experiência pode-nos fazer entender esta relação com o mundo. Sentimo-lo porque ele se faz sentir presente. Ele existe para além de nós, mas também em nós e nós existimos nele. Por essa mesma razão quando tomamos o mundo não percebemos que efectivamente estamos a contribuir para a sua destruição. É que tomar é diferente de receber e ao exercer a força quebramos a dádiva. Por esse mesmo motivo é que é importante compreender que as coisas revelam-se não adiantando torturá-las para que se mostrem. Mais do que dispostos a tomar, temos de estar dispostos a receber e nesse sentido o mundo tem muito para dar-nos. Basta compreendermos que a nossa posse nunca será mais do que uma possessão. Afinal quando o demónio possui a rapariga ela é alguma vez inteiramente dele?

1 - No meu percurso linguístico não deixo de achar piada à relação entre o "gib" alemão e o "gribo" (quero) letão. Não consegui investigar se há relação, mas sabendo que a Letónia foi profundamente influenciada durante séculos pelos germânicos, não deixa de ser curiosa esta relação entre o querer, o haver e o dar. Claro que isto desperta-nos o nosso entre o dever e o haver, que remete para o fenómeno da dádiva.

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