segunda-feira, fevereiro 19, 2007

É a vida...



Valentin de Boulogne ou Nicolas Tournier, São Paul escrevendo as suas Epistolas
Fonte: Wikipedia

"O véu das mulheres - 4*Todo o homem que reza ou profetiza, de cabeça coberta, desonra a sua cabeça. 5Mas toda a mulher que reza ou profetiza, de cabeça descoberta, desonra a sua cabeça; é como se estivesse com a cabeça rapada. 6Se a mulher não usa véu, mande cortar os cabelos! Mas se é vergonhoso para uma mulher cortar os cabelos ou rapar a cabeça, então cubra-se com um véu.
7*O homem não deve cobrir a cabeça, porque é imagem e glória de Deus; mas a mulher é glória do homem. 8Pois não foi o homem que foi tirado da mulher, mas a mulher do homem. 9E o homem não foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem. 10*Por isso, a mulher deve trazer sobre a cabeça o sinal da autoridade, por causa dos anjos. 11*Todavia, nem a mulher é separável do homem, nem o homem da mulher, diante do Senhor. 12Pois, se a mulher foi tirada do homem, o homem nasce da mulher, e tudo provém de Deus.
13Julgai por vós mesmos: será decoroso que a mulher reze a Deus de cabeça descoberta? 14E não é a própria natureza que vos ensina que é uma desonra para o homem trazer cabelos compridos, 15ao passo que, para a mulher, deixá-los crescer é uma glória, porque a cabeleira lhe foi dada como um véu?
16Mas, se alguém quiser contestar, nós não temos esse costume, nem tão-pouco as igrejas de Deus. "

Carta de S. Paulo aos Coríntios, 11, 4-16

Há quem pense que os valores do Ocidente são muito diferentes. Há quem queira fazer valer uma imagem que assente apenas na pluralidade, na concórdia, na compreensão. Bom, receio que esse Ocidente nem sempre existiu. Para quem não sabe os véus que as senhoras usavam para ir à Igreja tinham uma razão de ser. Essa razão está aqui expressa por Paulo.
Há quem diga que a Igreja Católica se tornou na Igreja de Paulo e é por essa razão que se tornou dogmática fechada, enclausurada em Paulo.
Não era este o capitulo desta carta que eu queria trazer aqui, mas deparei-me com ele e era impossível escapar.
E a minha pergunta é: Numa sociedade contemporânea, marcada pelos valores da igualdade pode a Igreja Católica defender os valores de Paulo. Deverão ainda as mulheres ir à Igreja de véu?
Eu sei que já passou a onda do referendo. Ainda bem. Poderiam pensar que este post teria a ver com o assunto do aborto. Mas não tem. Para mim a discussão desse assunto faz parte de uma discussão muito vasta.
Supostamente neste referendo existiam dois lados, um que seria o dos valores e outro que seria o do vale tudo.
Este foi um erro que determinadas ortodoxias não compreendem. A sociedade liberal possui valores mas deslocou-os para a esfera do individuo. Na sociedade liberal, os valores são da ordem do pessoal e do intimo. Mas será mesmo assim? Será que os valores podem de facto passar para uma esfera unicamente pessoal?
Será que podemos ser absolutamente livres nas nossas escolhas? Poderemos ser absolutamente incondicionais?

Perdoem-me a inocência da pergunta, mas como muitos outros autores (cujos nomes não me apetece citar), penso que perguntas simples podem revelar-nos questões extremamente complexas.
Cada individuo parte de princípios, mas poderão esses princípios ser absolutamente seus? Serão na medida em que ele os escolheu e os adaptou, mas terá ele sido absolutamente impermeável ao que o rodeia? O que nos faz escolher? O nosso Egoismo?

O que nos leva a um outro conjunto de questões:
Estaremos cada um de nós orgulhosamente sós? O que queremos nós do Outro? Como nos relacionamos com esse Outro? Como a Corte que nos adora e que ali deve estar quando precisamos? Projectamos no Outro as nossas carências afectivas pelas quais psicanaliticamente culpamos os nossos pais? Até quando faremos o papel do filho mimado que não compreende que o mundo não vive para ele?
O mundo existe e é nele que vivemos. Somos ser-no-mundo, ser-aí. Este ser não é o individuo, é a pessoa, a pessoa humana.
Se sabemos que cada Homem não é uma ilha, se sabemos que qualquer sociedade tem valores, que a estrutura condiciona a acção tal como a acção condiciona a estrutura a questão é: Que valores fazemos nós hoje? Quais são os valores que partem de nós?

O egoísmo e o individualismo que marcam a sociedade de hoje são um marco de uma sociedade capitalista que educou os seres nesse sentido. A psicanálise muitas vezes desculpa esse individualismo cedendo a culpa a outrem. Projectamos e nessa projecção satisfazemos o alter-Ego dando mais um passo para ceder aos seus caprichos. Somos a marioneta dele e desse outro nós identificado como Id, a pulsão. A culpa vai morrer longe.

O liberalismo soube como dissolver a culpa, o capitalismo aproveitou-se disso fazendo render a lei do desejo. Mas mesmo assim tenho a impressão que ela continua a existir dentro de cada um, como em Crime e Castigo de Dostoievski. A febre assola-nos todos os dias e todos os dias tomamos a aspirina para não nos sentirmos culpados.

A escrita de Paulo é o produto de um homem torturado pela culpa. A sua solução foi uma espécie de tortura absoluta de Ego; um domínio da vontade absoluto que serviria essencialmente como expiação. Como em qualquer pessoa a biografia ajuda a explicar a tortura de Paulo. Espero que a morte lhe tenha dado descanso.

A culpa faz parte de nós. Aceitá-la não passa por banalizá-la ou por projectá-la. Talvez passe por fazer esse enorme exercício de vida que se chama aprender.

Como costumamos dizer em português: É a vida... (não é desculpa, é a vida)

4 comentários:

José Manuel disse...

Não creio que S. Paulo vivesse atormentado pela culpa. Penso que ele ultrapassou isso pelo Arrependimento e pela Redenção. Ele fala na sua culpa de perseguidor de cristãos, mas depois do episódio da estrada de Damasco passa pela fase de arrenpendimento. A Redenção exprime-se no enorme esforço evangelizador que desencadeou. Ele passa a utilizar a ideia da sua culpa anterior como uma metáfora para mostrar que todos, independentemente dos actos anteriores, podem aspirar à mesma situação.
S. Paulo foi o verdadeiro fundador da Igreja Católica e não S. Pedro.
O véu das mulheres deixou de se usar depois do concilio Vaticano II, embora o costume já antes tivesse entrado em desuso.

Gonçalo Leite Velho disse...

O Arrependimento e a Redenção, que são de facto dois aspecto essenciais da teologia de Paulo, revelam exactamente o papel da culpa nessa mesma teologia. O Arrependimento é o reconhecimento da culpa , a Redenção é o perdão da culpa. A culpa é o eixo central.
Já agora também era interessante explorar o argumento teológico que saiu do concilio e que quebrou com este ditame de Paulo. Em muito este concilio marcou a viragem da Igreja para um conceito de democracia cristã e de igualdade (que já tinha sido ensaiado anteriormente nomeadamente nos sindicatos belgas de matriz cristã). Quem conhece a história da Igreja sabe que ela muda, ainda que alguns não queiram ver essa mudança.

Anónimo disse...

Viva
uma vez que neste momento estou virada para "a descoberta" do Islão como cultura este é um assunto bastante interessante. Na verdade a visão que tinha do uso do véu era completamente diferente do real. Os que têm como fonte de conhecimento os meios de comunicação ocidentais têm a imagem que o véu simboliza a desigualdade sexual e o aprisionamento das mulheres, mas segundo tudo que tenho lido a este respeito, incluindo testemunhos de mulheres islâmicas, elas usam o véu com orgulho e de modo algum se sentem "reféns" de um simples véu.
O Alcorão diz: Ó Profeta! Dize às tuas esposas e filhas e às mulheres dos crentes que se envolvam e fechem nos seus mantos(quando saírem); isso é mais conveniente para que se distingam das demais e para que não sejam molestadas ... Capítulo 33 Vers. 59
No entanto, há uma tendência generalizada entre os muçulmanos para serem demasiado rígidos, para darem ênfase demais a esta questão. Eles consideram-na como a forma garantida de provocar o regresso total da implementação do Islão em todos os países muçulmanos.
Mas mesmo para nós cristãos!! entre as mulheres mais idosas e dum meio mais rural ainda existe esta imagem da mulher digna e honrada usar o véu! falo por exemplo de uma das minhas avós que não sai de casa sem "o lenço" -como ela lhe chama.
Pode ser que a intenção do Gonçalo com este post seja a de lhe dar outro rumo que não este que lhe estou a dar mas no entanto fica aqui esta questão...
será o desuso do véu uma ilusória liberdade da vida secular?

Gonçalo Leite Velho disse...

Emanuela

O seu comentário é de facto muito interessante.
A minha intenção era exactamente essa, era discutir os valores que são expressos em textos sagrados e o modo como eles são adoptados pelos fieis. Uma das questões que penso ser interessante na defesa do uso da hijab (ou mesmo do xador ou da burca) é exactamente esse reforço identitário. Contudo o hijab é mais do que a simples cobertura das mulheres. O preceito trata da questão da modéstia, da moderação, um modo de fazer face à vaidade e outros sentimentos. É nesse sentido que surge a honra. Numa sociedade dominada pela a imagem e pelo conceito de beleza torna-se difícil conciliar com este apelo à contenção.
Contenção e culpa constituem um jogo curioso.