domingo, novembro 05, 2006

O passado foi lá atrás? (Parte II)

Tenho por outro lado um amigo, pós-moderno, que não admite outra coisa senão que o passado nunca existiu, que não passa de uma projecção do presente.
Esse mesmo amigo diferencia entre quem escava bem e escava mal. Eu já lhe expliquei mil vezes que se ele faz essa distinção é porque acha que existe uma materialidade passada que pode ser bem ou mal revelada. Mas ele insiste que não, que toda a escavação mais não é do que a projecção do arqueólogo, que não existe tal coisa como a materialidade passada e eu continuo a perguntar-lhe que se é assim, se tudo é afinal sujeito, o que é que faz com que um sujeito seja melhor ou pior do que o outro. Afinal se tudo não passa de opinião...
Alguns irão afirmar que não é a opinião, é o método. Para estes para quem a técnica é tudo (a arqueologia tecnológica, pois o seu cerne é a ciência da técnica) a verdade acaba por em última análise estar no objecto. Porque acreditam piamente que com o método adequado tudo se revela na sua verdade objectiva. Não adianta explicar que o método condiciona o modo como a realidade se revela. Que a técnica em si é a forma de revelar, tal como o meio é a mensagem.
Mas voltemos ao discurso pós-moderno sobre o passado. Ele deve de certeza chocar quem entra na Universidade a cada ano. Penso que a maioría das pessoas embarcam na arqueologia com a ideia de ir descobrir o passado. Por essa mesma razão acho piada às variadas reacções de quando se lhe é dito que o passado nunca existiu.
Imagino o dia em que o discurso atinja finalmente o turismo: "Este sítio foi agora reconstruído, sendo absolutamente uma coisa do presente, sendo um trabalho de arqueologia porque se inspira na ideia de um passado, que não é mais do que a projecção do nosso presente" (lembra um sketch humorístico).
Na estadia em Inglaterra confrontei o Julian Thomas com esta ideia e este tipo de discurso (supostamente o Julian é pós-moderno e afirma-se como tal). Afinal o que é que ele acreditava que era o passado, apenas presente?
Ele negou categóricamente este tipo de discurso. Tanto ele como os demais membros do Stonehenge Riversida project com que falei (note-se que não falei com o Chris Tilley, mas ainda hei de falar) não deixavam de afirmar que existiu um passado. E que o esforço da arqueologia devia ser sempre tentar ir ao encontro desse mesmo passado, ainda que seja uma missão que sabemos ser impossível.
Fiquei menos espantado com esta resposta do que com o facto de eles afirmarem que certas estruturas eram de facto uma casa, MESMO, daquelas com lareira e tudo (afinal nem tudo é interpretação???).
Pessoalmente (e não se esqueçam que "pessoa" não significa individuo, mas sim alguém no mundo) acredito que o tempo é feito de passado, presente e futuro, sendo que cada momento é a reunião destes elementos.
Cada momento contém em si o passado, o presente e o futuro. O passado não foi só lá atrás, ele ainda é e será. Vai vivendo conosco e transformando-se, sendo que é muito mais materialidade do que narrativa.
O problema das narrativas é o mesmo problema dos discursos, no fundo é um problema da linguagem que deriva da semântica. Não sei até que ponto é que a arqueologia poderia viver sem a narrativa, ou qual o tipo de narrativa possível. Não é fácil contar histórias e menos ainda viver numa ciência que nasceu da necessidade de existir uma. Sei que quando tirarmos à arqueologia o seu sentido de Arche ela irá ficar descaracterizada. Mas ao mesmo tempo o modo como esse sentido tem sido aplicado parece extrordináriamente falso, inautêntico.
Talvez podessemos seguir a sugestão de Tim Ingold:

"But we should resist the temptation to assume that since stories are stories they are, in some sense, unreal or untrue, for this is to suppose that the only real reality, or true truth, is one in which we, as living, experiencing beings, can have no part at all. Telling a story, as I observed in Chapter Three (p. 56), is not like unfurling a tapestry to cover up the world, it is rather a way of guiding the attention of listeners or readers into it. A person who can 'tell' is one who is perceptually attuned to picking up information in the environment that others, less skilled in the tasks "

(2000, pág. 190)

Existirá de facto um passado autêntico e inautêntico? Eu penso que sim, mas isso não significa que esteja em desacordo absoluto com esta ideia de Ingold. A diferença fundamental está entre um passado vivido e um passado imposto por outros.

Referências:
Ingold, Tim (2000) The Perception of the Environment: Essays on Livelihood, Dwelling & Skill. London:Routledge

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