No portátil que utilizo, a tecla de ponto de interrogação deixou de funcionar.
Provavelmente deve-se a excesso de uso, ou então deve-se ao facto de eu o ter aberto para ver como era por dentro (e tirar um maldito de um clip que tinha entrado pela ranhura das disquetes).
De qualquer modo, estou limitado a não interrogar.
Posso exclamar, afirmar, mas não posso pensar.
Porque não consigo imaginar o que seja reflectir sem ser interrogar e interrogar sem dialogar.
Mas hoje parece que este mal de que sofre o meu pobre computador, aflige muita gente.
Já viram como é difícil ver alguém a reflectir em voz alta. Ou seja a perguntar-se.
É tabu (sabe-se lá que maldição sagrada poderia cair sobre nós, se cometessemos tal pecado).
Existe mesmo uma ideia de que a reflexão é um processo interior, feito dentro da cela de mosteiro que é o nosso corpo. Confunde-se reflectir com inflectir.
Ou seja:
-Eh pá, guarda lá essas dúvidas para ti, vê lá se te calas e ...
Terá de ser mesmo assim (bolas! Falta a porcaria do ponto de interrogação. Vêem como faz falta! Para dar início a um pensamento, a uma reflexão publica).
Quando uma pessoa dá uma aula, penso que essencialmente uma pessoa levanta reflexões. Essas reflexões são partilhadas com os alunos, tentando-se que naquela sala vários pensem em voz alta.
Ao tentar esta experiência choco sempre contra um muro criado pelo nosso sistema de ensino.
Porque o nosso sistema de ensino faz-nos penar durante doze anos com reflexões como:
-Então a democracia quer dizer o poder do… do…. do…
E enquanto as crianças se interrogam sobre o que é que a professora quer com o “do… do… do…” esta vai impacientando-se cada vez mais por uma falta de resposta.
-Vá lá meninos respondam! Do… do… do…
Diz alguém a medo:
-Homem (interrogação maior que a pergunta)
-Não (diz a professora)! Demos! Demos!!
Os alunos interrogam-se quando é que de facto “deram” para este peditório.
-Povo! É o poder do Povo! Das Pessoas! (expressão de desespero).
Na aula seguinte e face à mesma pergunta, um aluno mais interessado responde:
- das pessoas!
Responde a professora
- Também está certo, mas o correcto mesmo é dizer-se do Povo. Demos é igual a Povo. É fácil de decorar, não é!
Pois é. Doze anos a decorar as repostas a “do...do…do…”. Alguém espera então que de um momento para o outro as pessoas comecem a ler artigos, a reflectir sobre eles, a interrogar-se. Por isso é que “empinar” é palavra de ordem.
Uma vez uma amiga minha inglesa, perguntou-me:
-Empinar quer dizer estudar não é (interrogação. Bolas para o carácter que faz tanta falta!)
Será (cá está outra vez. Deveria aparecer aqui. Rais parta o raio do…)
Fica cá a dúvida, mesmo sem ponto de… de… de…
quarta-feira, junho 16, 2004
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1 comentário:
Gonçalo, eu não sou anónimo, o que não tenho é temoo nem paciência para passwords. E gosto do teu blog, que prometo irei frequentar popuco (seria mentir dizer o oposto), mais por falta de tempo que de interesse (e esta é verdade). E faço este comentário (que não é um comment, porque para esse peditório dou noutros espaços) para que saibas que sei ler, outras vez sei escrever, e que é possível escrever um texto cheio de interrogações, como este, sem um único ponto de interrogação. É a maravilha da linguagem, ou talvez não. Talvez que muitas vezes o bloqueio da comunicação chegue pela falta de silêncio e pelo excesso de pontos de interrogação. Ou apenas pela colocação das letras numa ordem errada (ou menos certa, como diriam certos diplomatas). Espero que mantennhas este blog como "o teu lado luminoso". Faz-te bem, e faz bem a quem o lê. E acredita que o melhor de escrever é mesmo o escrever, e não o ser lido. Claro que a leitura é o sentido da escrita. Mas escreve-se para viver, e o sentido da vidá é amar, e não meramente ser lido. Tantas interrogações e tantas faltas de pontos respectivos!
Um abraço em forma de carta aberta.
Luiz
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